Edgard Matsuki, fundador do site Boatos.org, e Gilmar Lopes, criador do E-Farsas, dão dicas de como desmascarar correntes e histórias enganosas na rede
Por Pública
Precursores do combate às mentiras que circulam na web, Edgard Matsuki e Gilmar Lopes desvendam fake news muito antes do surgimento desse termo.
O E-Farsas, de Gilmar, investiga rumores desde 2002, e o Boatos.org, de Edgard, se dedica à tarefa desde 2013. Para ambos, o assunto que está em voga no momento é o que chama atenção dos fomentadores de fake news.
Política e saúde são assuntos que geram muitas mentiras, disseram na entrevista concedida a Patrícia Figueiredo, repórter do Truco, projeto de checagem da Pública.
O papo na Casa Pública tratou também do processo de trabalho dos entrevistados, das mentiras mais absurdas com as quais se depararam e como as redes contribuem para a desinformação, ainda mais em ano eleitoral.
Patrícia Figueiredo – Como vocês começaram e como funciona o site de vocês? Como é o dia a dia?
Gilmar Lopes – Eu comecei em 2002 com o e-Farsas.com. Curiosamente, no dia 1º de abril, o Dia da Mentira. Mas ele surgiu um pouquinho antes, quando as correntes por e-mails ainda eram muito fortes. Eu recebia muitos e-mails com o assunto “repasse para o maior número de pessoas”, “aquela menina está com câncer, para cada e-mail repassado, a América Online vai ajudar com 5 centavos”. E eu repassava para as outras pessoas achando que estava fazendo uma boa ação. Um dia resolvi pesquisar: “Será que é verdade mesmo isso?”.
Entrei em contato com a AOL e era mentira a história. Foi a partir dessa pesquisa que comecei a falar para os meus amigos: “Olha, isso aqui é mentira por causa disso e disso”. E os amigos começavam a mandar: “Já que você é espertão, vou começar a te mandar umas fotos para você ver se é verdade”. Um dia resolvi juntar tudo em um endereço e criei o e-Farsas.com. A partir daí venho fazendo esse trabalho, que na época não tinha nem nome. Agora, tem o trabalho de “fact-checking”, e o boato se tornou o “fake news”. Mas, na minha época, quando a internet era um mato, não tinha um nome. A ideia do site é mostrar que qualquer um pode usar a própria internet como ferramenta para desmentir as histórias que circulam nela.
Edgard Matsuki – O meu trabalho começou 11 anos após o do Gilmar. Em 2012, eu trabalhei como jornalista de tecnologia no UOL, em São Paulo, e depois fui para Brasília trabalhar na EBC. No meio da apuração das pautas, as pessoas já compartilhavam muitas notícias falsas na internet. Ao mesmo tempo, eu não via tantas fontes jornalísticas, por assim dizer, que desmentiam as histórias. Mas ninguém da grande mídia acreditava que desmentir boato poderia se tornar conteúdo jornalístico. Além de ficar incomodado, eu queria ter um projeto de jornalismo para chamar de meu. Surgiu a ideia bem despretensiosa em 2013. Eu não tinha a mínima ideia da dimensão que as fake news poderiam tomar no sentido de influenciar a opinião pública e as pessoas nas eleições.
Patrícia Figueiredo – Como vocês conseguem administrar a quantidade de mensagens e sugestões que recebem diariamente?
Gilmar Lopes – O meu método é o seguinte: eu espero um pouquinho para saber se tem muita gente compartilhando. E se tem muita gente pedindo para eu pesquisar a respeito do assunto. Aconteceu há poucos dias uma informação dizendo que o Sylvester Stallone tinha morrido. Junto com essa notícia da morte, colocavam umas fotos dele já bem velhinho e debilitado. Na verdade, isso foi tirado de um papel que ele fez no filme Creed 2. Quando recebi essa notícia a primeira vez no WhatsApp, fui procurar no Google, mas ainda não estavam falando dela. Pensei: “Eu vou esperar um pouquinho porque pode ser que foi só o cara que inventou e passou para mim”. Mais tarde já estava todo mundo falando sobre isso.
Edgard Matsuki – Tanto o Gilmar quanto eu, por conta das nossas outras atividades profissionais, temos um número limitado de boatos que conseguimos checar para desmentir. Eu faço uma mensuração de quanto essa história está circulando antes mesmo da fase da checagem. Eu uso algumas métricas, como buscar no Google, buscar no Facebook, verificar o quanto as pessoas estão pesquisando ou mesmo o número de mensagens. Tenho três smartphones no momento só para isso e recebo uma média de 500 mensagens por dia.
Patrícia Figueiredo – O Truco faz checagem de fatos desde 2014. A gente começou com as eleições, e nosso foco é um pouco diferente do de vocês, mas às vezes a gente se esbarra.
Edgard Matsuki – Pode acreditar que em 2018 a gente vai se esbarrar muito.
Patrícia Figueiredo – É, a gente vai. Porque a política é o assunto do momento.
Edgard Matsuki – Eu coloco como um marco a partir do acidente do Eduardo Campos, nas eleições de 2014, que praticamente incendiou as eleições. Uma porque tornou a disputa mais equilibrada, e outra porque a morte de um candidato é terreno fértil para muita teoria da conspiração.
Gilmar Lopes – Eu lembro que surgiu a história de que o avião foi sabotado, depois que a Dilma tinha proibido a investigação e depois que foi a Marina que tinha…
Edgard Matsuki – Acusaram todos os candidatos de terem matado o Eduardo Campos no final. Cada dia teve um boato a respeito de um deles. Tem uma característica interessante quando um assunto entra no debate público: se pegarmos fevereiro, o assunto mais falado é a intervenção federal no Rio de Janeiro. Em sete dias, desmentimos sete boatos a respeito desse assunto. Em janeiro, foi febre amarela, no final do ano passado foi a exposição do MAM…
Gilmar Lopes – É, o assunto que está em voga no momento é o que chama atenção, é o que atrai mais cliques. E tem muito site que vive disso: inventa uma notícia e torce para que o maior número de pessoas vá lá e clique nos banners.
Edgard Matsuki – E tem até uma projeção: normalmente o desmentido é muito menos lido do que a notícia falsa. E tanto o e-Farsas quanto o Boatos.org têm uma audiência razoável. Eu multiplico por dez a dos sites de notícias falsas.
Gilmar Lopes – Há poucos dias eu tentei entender como uma notícia nasce e como ela se espalha na internet. Então, no grupo do WhatsApp dos nossos moderadores no Facebook, criamos uma nota de R$ 50 com a cara da Pabllo Vittar, que dá muita visibilidade… Mas a minha ideia nem era que fosse viralizar. Eu só entrei no Twitter e escrevi: “Gente, será que isso é verdade?”. E publiquei a foto. Rapidinho apareceu um grupo no Facebook dizendo que a Câmara Federal – olha só, a “Câmera”, ainda escrevem errado, “a Câmera Federal” – tinha votado um projeto de lei para colocar a Pabllo Vittar na nota de R$ 50. E a partir daí começou um monte de gente, site da [rádio] Metropolitana, vários sites começaram a publicar: “Será que é verdade?”. E o que percebi é que ninguém conseguiu descobrir a origem do boato, no caso, eu. Até porque quem imaginaria que eu faria uma besteira dessas? Depois que publiquei no site explicando a importância desse estudo, outros veículos, por exemplo o UOL, chegaram em mim: “Ah, foi você? Então conta como foi pra gente”. Mas o desmentido não teve a mesma força daquela viralização.
Patrícia Figueiredo – Quando a gente recebe uma mensagem, é muito difícil saber de onde vem. Quais são as origens mais comuns e as motivações?
Edgard Matsuki – Existem boatos e boatos. Se a gente fosse falar de todos os tipos de fontes, acho que não daria porque o pessoal tem que ir embora hoje. Mas vou dizer basicamente: atualmente, no Brasil, corrente de WhatsApp que começa como um trote e as pessoas compartilham achando que vão fazer o bem ou aquela história de compartilhar mensagem para ajudar uma criança. Gente que ganha dinheiro com isso, a pessoa cria um blog em um dia, publica uma notícia falsa, tem 1 milhão de cliques, acaba com o blog, cria outro blog, publica outra notícia falsa. Basicamente, essas duas fontes são as principais.
Gilmar Lopes – A gente publicou há poucos dias a respeito de um político que estava votando para outras pessoas no Congresso porque os deputados estavam de folga no Carnaval. Essa mesma história voltou na semana seguinte dizendo que esse cara era o filho do Bolsonaro. Mas, na verdade, é uma filmagem da Ucrânia, que não tem nada a ver com o Brasil. E, hoje, eu estava vindo pra cá e vi, em um site italiano, essa mesma história circulando como se fosse um político da Itália. Então, não tem muita nacionalidade. O boato nasce aqui, vai pra lá, de lá vem pra cá. Em inglês também, né? Às vezes a gente vai pesquisar alguma coisa e descobre que nasceu em inglês essa história e alguém importou pra cá.
Patrícia Figueiredo – É importante falar que esses são os boatos que vocês conseguem rastrear, descobrir a origem. Tem um monte de boatos que a gente consegue descobrir que é falso pela apuração jornalística mesmo.
Edgard Matsuki – É, um áudio de WhatsApp, como é que você vai conseguir reconhecer alguém que gravou um áudio de WhatsApp? É praticamente impossível.
Gilmar Lopes – O interessante no fenômeno que acontece no WhatsApp é que tem muitas pessoas para as quais a porta de entrada para a internet é o WhatsApp. Tem muita gente que acha que a internet é o WhatsApp e o Facebook. Então, as pessoas entram e começam a receber essas notícias: “Gente, olha o que vai acontecer! Dia 16 de fevereiro vai acabar o mundo!”.
Edgard Matsuki – Tem uma questão econômica dos planos limitados de acesso.Tem gente que não clica no link porque teria que gastar os créditos do celular. Pode parecer uma coisa simples, mas imagina as pessoas que, de fato, têm dificuldade até de colocar crédito no telefone. Eu não sei se, nessa batalha contra as fake news, isso merecia ser repensado também.
Patrícia Figueiredo – Vocês estão fazendo essas checagens muito antes de a gente começar a falar em fake news. Como vocês veem o crescimento desse assunto?
Gilmar Lopes – Tem alguns veículos como o G1, Veja, Terra, que agora estão falando que estão fazendo fact checking. Quer dizer que antes eles não faziam? É como se o dono da sua pizzaria falasse assim: “Ó, agora o nosso pizzaiolo lava a mão, gente. Beleza?”. Porque a obrigação do jornalista é fazer o fact checking, né? Só que eles criaram uma sessão dizendo que agora eles fazem.
Edgard Matsuki – Eu creio que o Gilmar deve ter a mesma sensação de “eu já sabia”. Inclusive, antes de criar o Boatos.org, eu tentei implementar a ideia de checar informação falsa em alguns veículos, não deu muito certo, mas que bom, porque o meu projeto surgiu antes deles. Fora isso, eu acho louvável, para falar a verdade. E facilita muito o trabalho.
Gilmar Lopes – Quanto mais gente fizer isso, melhor.
Edgard Matsuki – Em 2014, se eu fosse tentar checar com uma assessoria de imprensa de um ministério, por exemplo, se uma informação relacionada a uma vacina era verdadeira, eles nunca me responderiam. Fiz isso em 2017, não demorou meia hora, a resposta veio e eu consegui desmentir o boato. Eu acho que a entrada desses grandes “players” no serviço de fact checking dá credibilidade e até visibilidade ao trabalho. Para fazer uma apuração, pelo menos com fonte primária, está sendo muito mais fácil.
Patrícia Figueiredo – Nas nossas redes, o Tadeu Júnior pergunta: está sendo constantemente dito que as fake news são uma das maiores preocupações nas eleições deste ano. Esse temor tem fundamento?
Gilmar Lopes – Acredita-se que essas eleições, inclusive nos Estados Unidos também, tenha tomado determinado rumo por causa de fake news. Descobriu-se uma rede de sites especializados nisso. Aqui no Brasil, com certeza esse ano a gente vai ter isso aqui.
Edgard Matsuki – Acredito que sim, as fake news podem influenciar as eleições, mas o temor excessivo pelas fake news também podem influenciar as eleições.
Rubem Petro – A minha pergunta é a respeito da questão de credibilidade. Como é que vocês trabalham para manter a credibilidade, a independência, a neutralidade de vocês?
Edgard Matsuki – Vou sugerir a quem está no computador fazer um exercício. Entra na página do Boatos.org e dá uma olhada nas nossas avaliações de uma estrela, que tem críticas muito interessantes. Só para falar de duas: uma diz que, de fato, o Boatos.org é formado por esquerdopatas que só beneficiam o PT, e logo abaixo tem uma que o Boatos.org foi criado por fascistas que servem para defender o Bolsonaro nas eleições 2018. A partir do momento em que a gente é criticado pelos dois lados, tem-se até um alento. Mas o que a gente faz para manter a credibilidade é, na hora da escolha das pautas, não privilegiar político A ou político B.
Gilmar Lopes – Lá no e-Farsas, quando a notícia é verdadeira, eu já tive o trabalho de pesquisar e tudo, eu publico mesmo assim, sendo verdadeira, e explico por que é verdadeira.
Patrícia Figueiredo – Como funciona o método de vocês?
Edgard Matsuki – A primeira coisa que eu faço quando recebo um texto é: eu leio. E parece óbvio, né? Eu leio o texto todo. E só de ler o texto você já consegue, se tiver o mínimo de senso crítico, ter noção se a história é verossímil ou não é verossímil. Como eu disse, nem sempre você, nessa primeira leitura, está certo.
Gilmar Lopes – Na maioria dos casos, tem um personagem ou uma entidade para dar mais credibilidade. A minha função é tentar encontrar esses envolvidos que estão citados e tentar descobrir se eles estão mesmo envolvidos.
Edgard Matsuki – Tem um outro ponto também que é: existem algumas características que são intrínsecas aos boatos. Os boatos, normalmente, são datados. Pergunto a vocês: por que existem essas características? Eu tenho uma concepção de que os boatos sobrevivem graças a algumas dessas características. Uma delas é ele ser vago. Se a informação for um pouco vaga dentro desse texto, ela pode sobreviver por mais tempo. Segundo ponto: muitos boatos têm erros de português, de concordância, de vírgula, de gramática. Talvez seja pela capacidade de escrita das pessoas que criaram o boato. É uma característica. Outra característica: o boato normalmente é alarmista. Porque, se você for criar um boato sobre algo que não vai chamar atenção de ninguém, ele não vai circular. Para dar um reforcinho nesse senso alarmista, eles utilizam algumas palavras-chave: “atenção”, “cuidado”, “a mídia quer esconder”…
Gilmar Lopes – “Repassem antes que deletem.”
Edgard Matsuki – E o último que cito é o pedido de compartilhamento. Uma notícia que tem um pedido de compartilhamento, isso é quase se aproveitar da boa vontade das pessoas. Um pedido do tipo “compartilhem essa informação para ajudar essa criança que está doente”. Quem, sem coração, não quer ajudar uma criança doente? Então, se vocês virem essas quatro características, texto vago, erros de ortografia, caráter extremamente alarmista e pedido de compartilhamento…
Gilmar Lopes – E falta de data. “Aconteceu esta semana”…
Edgard Matsuki – Tem uma história que, sempre quando tem algum evento astronômico, volta a circular, que é uma história que fala que “hoje raios cósmicos vão invadir a Terra”, e é bom você “desligar o seu celular meia noite e meia”. Para piorar, tem um link de um veículo da grande mídia que deu essa notícia, só que o raio do veículo não tem a data da publicação, e no título está “hoje”. Deve ser a matéria mais acessada do tal veículo, mas ele sobrevive graças a essa falta de data, porque hoje os raios cósmicos finalmente vão fazer o seu celular explodir.
Gilmar Lopes – Tem um legal que circula todo ano falando: “Este mês vai ter cinco sábados, cinco domingos e cinco sextas-feiras. Vocês tem que compartilhar porque esse evento vai acontecer só daqui a 500 e poucos anos, você vai ganhar muito dinheiro e tal”. E é só você dar uma olhadinha no calendário que você vai ver que em vários meses acontece isso, ano que vem, este ano.
Pedro Prado/Agência Pública
Gabriela Nogueira – As fake news de fato podem alterar a opinião de alguém, ou quando ela compartilha, independentemente de ser falsa ou não, isso já não reflete uma visão de mundo que a pessoa tem?
Gilmar Lopes – Muitas vezes a pessoa compartilha para tentar provar um ponto de vista dela. Tem gente que fala: “Não falei, esse cara aí ó, bem que eu falei”. Ou tem gente que até faz assim: “Pelo sim, pelo não, não sei se é verdade, mas eu vou compartilhar assim mesmo”. Acredito que muita gente compartilha, primeiro, para fortalecer o ponto de vista e para tentar modificar o ponto de vista da outra pessoa.
Patrícia Figueiredo – No Truco, a assessoria é sempre o primeiro passo. A gente acha muito importante avisar a pessoa de que ela está sendo checada. Paralelamente, a gente procura outras fontes. À vezes, não encontramos algum dado que deveria estar em formato aberto. A gente tenta evitar e pede os dados para a assessoria, pressionando para que eles sejam públicos.
Gilmar Lopes – Alguma resposta muito bem dada por assessoria já derrubou uma checagem de vocês nessa primeira fase?
Patrícia Figueiredo – Não derrubou, mas virou um “verdadeiro”. Eles informam de onde veio a informação e gente coloca lá. Quais são os hits do site? Quais boatos têm mais acessos? Existem nomes que vocês sabem que vai bombar, vai ter muito acesso?
Gilmar Lopes – Pabllo Vittar! Ele é uma das vítimas de boatos porque ele está em alta. Como a gente falou aqui, o assunto que está em alta é sempre ferramenta, -matéria-prima para fake news.
Edgard Matsuki – Juro que tentei puxar pela memória qual foi o maior hit de 2014. Apesar das eleições, foi uma teoria da conspiração que falava que o Brasil tinha vendido a Copa para a Alemanha.